A Filosofia no universo das outras ciências
A Filosofia no universo das outras ciências
A palavra «ciência» pode ser tomada no sentido lato e no sentido restrito. No sentido lato, a ciência consiste no conhecimento das causas; no sentido restrito (aquele em que mais se emprega hoje a palavra), significa o conhecimento dos factos adquiridos através dos processos de observação e da experiência, com o fim de estabelecer as leis que o regem.
Embora a Filosofia mereça o título de ciência, porque se preocupa com a investigação das causas primeiras e finais de toda a realidade, apenas o é no sentido lato da palavra, distinguindo-se das ciências propriamente ditas por várias razões:
a) Pela profundidade da investigação
- A Ciência procura as causas próximas e imediatas das coisas.
- A Filosofia procura as causas últimas e finais das coisas.
b) Pela reflexão critica
- A Ciência pressupõe reflexão e critica.
- A Filosofia põe em questão tudo o que se apresenta ao espírito para examinar, discutir, avaliar e descobrir o seu significado, inclusive o da própria ciência.
c) Pelo grau de generalidade e síntese
- A Ciência limita-se à realidade dos factos, ocupa-se dos fenómenos.
- A Filosofia procura dar unidade total ao saber, pretende penetrar na realidade global.
d) Pela humanidade e valorização
- A Ciência ocupa-se em geral, da realidade estranha ao Homem.
- A Filosofia é essencialmente humana e axiológica, isto é, ela dá valor acção e à existência humana.
No seu próprio campo, todas as ciências aceitam certas questões de que afinal não tratam, por transcenderem as possibilidades dos seus processos de investigação, mas que lhes servem de fundamento (problemas de origem, possibilidades, condições, método, limites, valor...).
A Filosofia, portanto, fornecendo às ciências os princípios em que elas se baseiam, legitima-as, critica-as e defende-as.
Nos parágrafos anteriores mostrámos a influência da Filosofia na Ciência, em seguida vamos tratar da influência da Ciência na Filosofia.
Tal como a Filosofia fundamenta as ciências, estas também fornecem os dados a partir dos quais a Filosofia se eleva a explicações mais profundas.
As investigações biológicas tornam possível estudar a questão da origem e natureza da Vida com maior eficácia; o estudo da fisiologia é indispensável para compreender as relações do organismo com o espírito; as descobertas recentes da Física permitem um melhor conhecimento do problema metafisico da constituição dos corpos; o progresso da Psicologia experimental fornece elementos à Lógica, à Epistemologia, etc.
A Filosofia, para se elevar a princípios gerais do conhecimento, apoia-se nas leis científicas, que coordena e generaliza. O filósofo, para construir hipóteses muito engenhosas e deduzir conclusões, precisa de bases sólidas fornecidas pela ciência.
Só a Filosofia pode a priori elucidar as condições de validade das ciências, orientando a pesquisa científica e sugerindo uma atitude de questionamento. Por seu turno, à ciência caberá fornecer conteúdos concretos as formulações abstractas da Filosofia.
Texto 01
«O Homem não pode passar sem a Filosofia, diz, com razão, Jaspers. Por isso ela está presente em toda a parte e sempre. A única questão que se pode pôr é a de saber se ela é consciente ou não, boa ou má, confusa ou Clara.
Com efeito, a busca da verdade científica, que, aliás, só interessa a uma minoria, não esgota em nada a natureza do Homem, mesmo para essa minoria. Para além disso, o Homem vive, toma partido, crê numa multiplicidade de valores, hierarquiza-os, e dá, assim, sentido à sua existência mediante opções que ultrapassam incessantemente as fronteiras do seu conhecimento efectivo.
No Homem que pensa, esta questão só pode ser raciocinada no sentido em que, para fazer a síntese entre aquilo que ele crê e aquilo que ele sabe, ele só pode utilizar uma reflexão, quer prolongando o seu saber, quer opondo-se a ele num esforço critico para determinar as suas fronteiras actuais e legitimar a hierarquização dos valores que o ultrapassam. Esta síntese racional entre as crenças, quaisquer que elas sejam, e as condições do saber, constitui aquilo que nos chamamos sabedoria e é esta que nos parece ser o objecto da Filosofia.
O termo sabedoria não tem nada de intelectualista, uma vez que ele implica uma tomada de posição vital. Ele também não tem nada de limitativo do ponto de vista do exercício do pensamento, pois comporta a ideia de que essa tomada de posição seja racionada e não simplesmente decisória. Mas se uma sabedoria engloba a busca de uma verdade, ela não pode deixar de distinguir, se for revista de sensatez, entre as tomadas de posição pessoais ou de grupos restritos, relativas as crenças evidentes para alguns mas não partilhadas por outros, e as verdades demonstráveis acessíveis a todos. Por outras palavras, pode haver várias sabedorias, enquanto só existe uma verdade.»
J. Piaget; Sagesse et illusions de la Philosophie; Paris; PUF: 1968
Fig: Jean Piaget (1896-1980)
Texto 02
Pois que nós vemos, enfim, da nossa breve e incompletíssima revista dos vários problemas da Filosofia, será natural que consideremos agora, para concluir, qual é o valor da Filosofia, e por que motivo se deverá estudá-la. É tanto maior a necessidade que seja considerado este problema quanto mais é certo que numerosas pessoas, por influxo da ciência ou dos negócios práticos, propendem a duvidar que a Filosofia seja algo melhor que passatempo inútil, com distinções de subtileza frívola e controvérsia sobre certos assuntos onde não é possível conhecimento algum.
Este modo de considerar a Filosofia resulta, ao que parece, de uma concepção errada dos fins da Vida humana, e em parte de uma concepção errada sobre a espécie de bens que a Filosofia busca. As ciências físicas, através das descobertas e das invenções, são úteis a inúmeras pessoas, por inteiro ignorante de tais ciências,
sendo, por isso, recomendável o seu cultivo, não unicamente ou em primeiro lugar, pelos efeitos que tenham em quem as estuda, mas antes pelos efeitos na humanidade em geral.
Não é esta utilidade que compete à Filosofia. Se o estudo da Filosofia é susceptível de préstimos para aquelas pessoas que a não estudam, só poderá ser indirectamente, por intermédio do efeito que vem da Vida das pessoas que se lhe consagram. É nestes efeitos, por conseguinte, que nos cumpre procurar o seu valor, se algum ela tem (...).
A Filosofia, como os demais estudos, visa primeiramente o conhecer. O conhecimento que ela tem em vista é aquela espécie de conhecimento que confere unidade e organização sistemática a todo o corpo do saber científico, bem como o que resulta de um exame critico dos fundamentos das convicções, dos nossos preconceitos, e das nossas crenças.
Bertrand Russel; Os Problemas da Filosofia; Coimbra; 1930
Fig: Bertrand Russel, (1872-1970) filósofo não-empirista.
Texto 03
A Filosofia distingue-se das outras artes e ciências mais pelo método do que pelo objecto. Os filósofos formulam proposições com o intuito de serem verdadeiras e, em geral, produzem argumentos tanto para apoiar as teorias próprias como para refutar as alheias. Mas os argumentos são de carácter especial. Não são, ou muito raramente são, semelhantes provas de uma proposição matemática. Normalmente não consistem numa demonstração formal, nem se parecem com a prova em qualquer outra ciência descritiva. Teorias filosóficas não se verificam por observação. São neutras em matéria particular de facto.
Não é que os filósofos não se ocupem dos factos, mas acham-se na posição singular de que toda a prova relativa aos seus problemas é já eficaz para eles. Não é necessária ciência ulterior para decidir questões filosóficas, como saber se o mundo material é real, se os objectos continuam a existir quando não são percebidos, se outros seres humanos são conscientes no mesmo sentido que cada um o é de si. Não são questões solúveis experimentalmente, desde que a resposta determine a interpretação de qualquer experiência. O que em tais casos se discute não é, dadas certas circunstâncias, se produzirá este ou aquele evento, mas antes como descrever alguma coisa que sucede. Esta preocupação com o modo como as coisas são ou devem ser descritas tomam frequentemente o aspecto de inquirição å sua natureza. Assim, os filósofos costumam perguntar, por exemplo: O que é o espírito? Que espécie de relação é a causalidade? Qual é a natureza da crenqa? Que é a verdade?
The problem of knowledge Alfred Jules Ayer
Texto 04
As seguintes máximas do entendimento humano comum (...) podem, contudo, servir para a elucidação dos seus princípios (da critica do gosto) (...).
- 1) Pensar por si mesmo.
- 2) Pensar colocando-se no lugar de qualquer outro.
- 3) Pensar sempre de acordo consigo mesmo.
A primeira é a máxima de pensar livre de preconceito, a segunda a da maneira de pensar alargada, a terceira a da maneira de pensar consequente.
Texto 05
Qual é a preocupação fundamental da Filosofia?
A Filosofia é diferente da Ciência e da Matemática. Ao contrário da Ciência, não assenta em experimentações nem na observação, mas apenas no pensamento. E ao contrário da Matemática, não tem métodos formais de prova. A Filosofia faz-se colocando questões, argumentando, ensinando ideias, pensando em argumentos possíveis contra elas e procurando saber como funcionam realmente os nossos conceitos.
A preocupação fundamental da Filosofia consiste em questionarmos e compreendermos ideias muito comuns que usamos todos os dias sem pensarmos nelas. Um historiador pode perguntar o que aconteceu em determinado momento do passado, mas um filósofo perguntará: «O que é o tempo?». Um matemático pode investigar as relações entre os números, mas um filósofo questionará: «O que é o número?» Um físico perguntará de que são constituídos os átomos ou o que explica a gravidade, mas um filósofo irá perguntar como podemos saber que existe qualquer coisa fora das nossas mentes. Um psicólogo pode investigar como é que as crianças aprendem a linguagem, mas um filósofo quererá saber: «O que faz uma palavra significar qualquer coisa?».
Qualquer pessoa pode perguntar se entrar num cinema sem pagar, é certo, mas um filósofo perguntará: «O que torna uma acção certa ou errada?».
Não poderíamos viver sem tomarmos como garantias as ideias de tempo, número, conhecimento, linguagem, certo ou errado, mas em Filosofia investigamos essas mesmas coisas. O objectivo é levar ao conhecimento do mundo e de nos mesmos um pouco mais longe. É Obvio que não é fácil. Quanto mais básicas são as ideias que tentamos investigar, menos instrumentos temos para nos ajudarem. Não há muitas coisas que possamos assumir como verdadeiras ou tomar como garantidas. Por isso, a Filosofia é uma actividade de certa forma vertiginosa, e poucos dos seus resultados ficam por desafiar por muito tempo.
Nagel, Thomas. Uma Iniciação à Filosofia. Edições Gradiva, Lisboa; s.d., pp. 8, 9.
Qual é a especificidade da Filosofia?
Parece-me muito razoável a afirmação de que o filósofo se deve ocupar do conhecimento, dos valores do Homem e da linguagem.
Se olharmos ao nosso redor, o mundo parece estar cheio de questões não resolvidas, importantes e decisivas, que pertencem a todos os campos acima mencionados, mas que não são tratadas, não podem ser tratadas, por qualquer ciência particular.
A Filosofia ocupa-se dos mesmos objectos que as outras ciências. Em que, então, a Filosofia se distingue da Ciência? A resposta é que ela se distingue tanto pelo método da investigação como pelo ponto de vista em que se coloca. Pelo método - porque o filósofo não está obrigado a restringir-se a qualquer dos métodos de conhecimento, que são muitos. Assim, por exemplo, não está obrigado, como o físico, a reduzir tudo a fenómenos observáveis pelos sentidos, isto é, ao método de redução empírica: pode também servir-se da intuição da realidade e de outros métodos.
Além disto, a Filosofia distingue-se das outras ciências pelo ponto de vista em que se coloca. Quando considera um objecto, ela encara-o, por assim dizer, sob o prisma dos limites, dos aspectos fundamentais.
Nesse sentido, a Filosofia é a ciência dos fundamentos da realidade. Lá, onde as outras ciências param, onde, sem mais indagar, aceitam os pressupostos, aí entra o filósofo e começa a investigar. As ciências conhecem - mas o filósofo pergunta o que é o conhecimento; as outras ciências estabelecem leis - ele põe a questão do que seja uma lei; o Homem comum e o político falam do fim e da utilidade - o filósofo pergunta o que se deve entender por fim e utilidade.
Já se vê que a Filosofia é uma ciência radical no sentido em que ela vai as raízes das questões muito mais profundamente que qualquer outra ciência; lá onde as outras se dão por satisfeitas, ela continua a indagar e a perscrutar.
J, M. Bochensky; Diretrizes do Pensamento Filosófico. S. Paulo; E.P.U,; p. 28
Bibliografia
CHAMBISSE, Ernesto Daniel; COSSA, José Francisco. Fil11 - Filosofia 11ª Classe. 2ª Edição. Texto Editores, Maputo, 2017.
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