A pessoa como Sujeito Moral
A pessoa como Sujeito Moral
Na introdução ao estudo da Filosofia, apresentamos algumas das disciplinas da Filosofia. Uma delas é a Ética. Aí vimos que a Ética é a disciplina filosófica que aborda a acção moral, investiga a prática humana, procurando compreender a qualidade que permite que esta possa ser vista como moralmente boa ou não. Vimos ainda que a Moral é da ordem dos factos, é o conjunto de princípios, de normas e de valores existentes numa determinada sociedade e aceites pelos membros dessa mesma sociedade como válidos.
Cada cultura tem os seus princípios, as suas normas e os seus valores, embora possam ser muitas vezes comuns a diversas sociedades.
Nesta Unidade Didáctica introduzimos um tema de particular importância, que aborda o conceito «Pessoa» como categoria ética fundamental. O que é que faz de nós pessoas, ou seja, o que é que nos distingue dos outros seres que não são pessoas? Eis aqui a razão pela qual temos de começar por tentar responder questão «Quem sou eu?».
O conceito de «Pessoa»
A noção de pessoa é a expressão do mais elevado conceito que o Homem tem de si próprio e nela se conjugam algumas notas constitutivas… In: Do Vivido ao Pensado – Introdução à Filosofia 10º Ano; Porto Editora,1995.
A noção de pessoa aparece em oposição de individuo, quer dizer, individuo biológico. Mas o que é um indivíduo biológico? Individuo significa, antes de tudo, consistência, isto é, coesão, indivisibilidade interna, unidade. Esta unidade não significa simplicidade, mas sim uma composição de partes. Enquanto tal, esta unidade é totalidade: diferenciada, estruturada e centrada.
É uma totalidade diferenciada, uma vez que o próprio conceito de «todo» implica uma multiplicidade qualitativa de partes que compõem o todo. Neste sentido, o ser vivo, enquanto individuo, é uma totalidade diferenciada.
É uma totalidade estruturada porquanto os diversos órgãos e as funções que eles exercem não são independentes uns dos outros como se de estratos que se sobrepõem se tratasse. Os diferentes órgãos e as suas funções constituem uma estrutura, isto é, são interdependentes; só são aquilo que são devido à relação de mútua dependência.
É uma totalidade centrada porque um individuo biológico enquanto tal, tem um centro a partir do qual se realiza essa totalidade. O ser vivo, no seu agir, refere-se a si mesmo, a algo interior. Na Vida vegetativa, por exemplo, a planta já realiza um processo biológico interno de crescimento e de conservação.
Em relação ao animal, isto verifica-se de um modo mais significativo e a um nível superior. O animal não só tem percepções sensíveis, como também pode conservá-las e reagir de acordo com uma sensibilidade instintiva. A este centro poder-se-ia chamar consciência ou memoria sensível.
Quem sou eu?
No Homem, as coisas passam-se de maneira muito diversa, o que o torna completamente diferente dos outros indivíduos biológicos e o coloca num outro nível em relação a eles. A centralidade no Homem não é somente consciência ou memoria sensível, mas, sobretudo, reflexão, pois o Homem não sé sabe, mas sabe que sabe. Então, quando a consciência é reflexão, aí está-se no mundo do espírito e da pessoa.
Esta totalidade centrada que faz com que a pessoa transcenda o mero nível biológico é que lhe confere uma certa autonomia em relação à sua co-existência com o meio ambiente e uma abertura em relação à sua co-existência com os outros.
O que é pessoa? O conceito «Pessoa» pode ser abordado a partir de duas perspectivas: uma parte da problemática clássica; outra, mais descritiva, toma em conta as filosofias mais recentes.
Na perspectiva da Filosofia clássica far-se-á referência somente a alguns filósofos. Para o filósofo romano Cícero, por exemplo, «Pessoa é o sujeito de direitos e deveres». Boécio, porém, entende Pessoa como uma «substância individual de natureza racional». Na mesma linha de pensamento de outro romano Boécio, S. Tomás de Aquino, já na Idade Média, defende que Pessoa é um «subsistente de natureza racional».
Estes últimos dois filósofos destacam dois elementos definidores de Pessoa. Segundo eles, começa por ser individuo subsistente, coeso, uno, total e de natureza racional. Quer isto dizer que o individuo, enquanto totalidade centrada, encontra a sua mais alta realização na Pessoa, onde esta «centralidade» significa reflexão completa: saber que sabe, consciência de ter consciência. Esta racionalidade pressupõe na Pessoa uma «dimensão espiritual». A razão é o fundamento da liberdade e esta o fundamento último de outras características e realizações da pessoa. É neste sentido que a ideia de Cícero não deve ser posta de lado, uma vez que a sua definição de Pessoa quer destacar os carácteres de relação e de inter-relação como constitutivos dinâmicos da pessoa humana.
Os filósofos da modernidade orientaram-se por outras direcções definitórias de Pessoa, das quais se têm destacado três:- A psicológica, que, tomando como referência o filósofo Descartes, toma a consciência como a característica definitória da Pessoa.
- A ética, que, segundo Immanuel Kant, destaca a liberdade como o constitutivo do ser Pessoa.
- A social, que com o Personalismo e, particularmente, com Martin Buber, sublinha na definição de Pessoa a relação desta com o(s) outro(s).
Estes dados, tanto da Filosofia clássica como da moderna, não devem ser vistos de forma isolada, como se eles se excluíssem mutuamente. Na definição de Pessoa, todos estes elementos se completam.
A consciência
Consciência é o conhecimento (scientia) que acompanha as nossas vivências (cum); a consciência apreende três sentidos: biológico, psicológico e moral. Neste caso, interessa-nos o sentido moral, em que a consciência é vista como o juiz do valor moral das nossas actividades: avaliando os nossos actos, atribuindo-lhes mérito ou demérito; julgando-os sob o ponto de vista do bem ou do mal e indicando o dever a seguir. Em sentido restrito, pode significar o conhecimento. concomitante e cumulativo dos próprios actos ou estados internos no preciso momento em que são vividos ou experimentados.
A consciência começa por conhecer o espírito e os seus fenómenos e, depois, estrutura-os e organiza-os num conjunto global, capaz de responder à situação existente. É através da consciência que conhecemos toda a realidade humana e extra-humana.
Fig. 2: A obra o pensador, de Augusto Rodin, representa a Reflexão e a Consciência. |
A consciência é um elemento essencial dos fenómenos psíquicos. No nosso íntimo, umas multidões de fenómenos interpenetram-se. A consciência é como um rio que desliza sem parar, e seria ridículo ver num rio não mais do que um composto de gotas de água. Esta afirmação baseia-se em Heráclito que dizia: «Ninguém pode banhar-se duas vezes nas mesmas águas do rio».
Além da mobilidade e da continuidade da corrente da consciência, há nela um poder de selecção e de síntese. A corrente de consciência apresenta uma finalidade e um objectivo, os quais se revelam na formação da percepção. Por meio desta, o individuo conhece a realidade e se adapta a ela, nomeadamente na formação da personalidade e sempre que surja uma situação nova a que precisa de se adaptar.
A selecção e a síntese são importantes na formação da personalidade, que é a síntese dos fenómenos psíquicos, seleccionados pela consciência e por ela referidos ao Eu. A personalidade exige uma selecção de fenómenos, pois nem todos os que afectam o Eu servem: escolhem-se uns e inibem-se outros.
Apos a selecção, vem a ligação ao Eu dos fenómenos seleccionados e, assim, se constitui a personalidade.
Acção humana e valores
O Homem é essencialmente um ser dinâmico, activo que transforma de uma forma consciente e continua as suas condições concretas. É por isso, que a sua acção consiste numa confrontação sistemática em busca de uma orientação que vai dar sentido à sua acção e ao seu agir para melhorar a sua Vida.
A questão crucial que se deve ter em conta é a resposta às seguintes perguntas: O que é uma acção? O que é agir?
Pode-se falar de acção quando se realiza um simples movimento corporal? Deslocar-se de um lugar para outro sem um destino premeditado, pode mesma se considerar acção? Como se diferencia acção dos movimentos de outros seres vivos?
Acção é uma operação própria de um agente que se opõe a uma inércia ou a passividade, acção pode designar, em particular, os actos voluntários ou involuntários, implica a intervenção de uma consciência própria, dai que a mesma se implica com a moral e pode ser boa ou má. Aristóteles percebeu que a acção humana tem como finalidade última a conquista do bem e da felicidade.
A acção humana pode-se resumir em actos voluntários ou involuntários. Consideramos um acto de voluntário quando consciente e premeditado e orientado para uma finalidade concreta. O acto involuntário ocorre na circunstância de pressão pelas condições concretas de momento ou que não passe pelo controle da consciência.
A divisão de valores e caracterização de valores não é uniforme, ou seja, depende fundamentalmente do sistema de valores vigente numa determinada sociedade. Os valores podem ser morais - aqueles que se relacionam com um conjunto de normas e regras comportamentais vigentes e aceites como padrão da sociedade. Cada organização social, desportiva, religiosa ou económica define os seus valores, os quais orientam a filosofia do funcionamento e relacionamento dos sujeitos concernidos. Podem ser também de carácter local - que dizem respeito a um grupo cultural.
Os valores de âmbito moral são tratados na ética e Deontologia. Os valores, neste âmbito, orientam para uma boa convivência social, aspectos ligados a solidariedade, ajuda mútua, apoio aos desfavorecidos entre outros. Outra grande categoria de valores é a de categoria material e artística. Os valores são por natureza relativos. Não existe um consenso do que se toma como valor padrão universal, é por isso que se fala da relatividade de valores, e de contra valores. Por exemplo, a determinação de uma obra de arte, de uma atitude, do modo de estar com os outros, a atitude perante o trabalho e perante a sociedade varia de pessoa para pessoa. No entanto, não existem valores que sejam mais altos que outros valores, apenas valores diferentes.
Há valores que são no mínimo um padrão para uma sociedade de pluralidade de ideias, como a nossa, por exemplo: responsabilidade, integridade, lealdade, honestidade, sigilo, competência, prudência, coragem, critica, perseverança, compreensão, tolerância, dinamismo, flexibilidade, humildade, imparcialidade e optimismo. Estes são valores que garantem estabilidade social e política de qualquer sociedade.
Para o caso de alunos podem ser vividos e aplicados em vários momentos da actividade do dia a dia, no trabalho em grupo, na limpeza da escola, do bairro, na participação nos processos eleitorais etc.
De onde vem a ideia do «bem» para o meu íntimo?
Consciência moral é a função que nos permite distinguir o bem do mal; orienta os nossos actos e julga estes segundo o seu valor. A consciência moral é a primeira condição de toda a moralidade. É por ela que a Vida moral começa. A sua presença distingue o Homem do animal; o seu desenvolvimento distingue a criança do adulto.
Todos os Homens e todos os povos sentem esta consciência moral que os acusa ou, pelo contrário, louva. A presença da consciência moral, no Homem, implica a existência de um conjunto complexo de elementos racionais (juízos e noções), afectivos (sentimentos) e activos (intenções, desejos e vontade).
Fig. 3: Momentos finais da Vida de Sócrates na cela recebendo a taça de cicuta. |
Os juízos precedem e seguem o acto moral. Antes do acto dizem-nos se ele é bom ou mau, se deve ser praticado ou evitado. Depois do acto, aprovam ou reprovam, conforme este é julgado bom ou mau.
Estes juízos subentendem, por sua vez, um conjunto de noções, tais como: bem e mal, coragem e cobardia, dever e direito, responsabilidade e sanção, etc.
Para Sócrates, a ciência ou conhecimento é que traduz a virtude, ao passo que o vicio seria a privação da ciência, isto é, a ignorância. Isto equivale a dizer que a riqueza, o poder, a fama, a saúde, a beleza e semelhantes não podem, pela sua natureza, ser considerados bens em si mesmos; enquanto dirigidos pela ignorância, revelam-se males maiores que os seus contrários, e levam o Homem a cometer o mal.
Assim, sendo governados pelo juízo e pela ciência ou conhecimento são bens maiores. Em si mesmos, nem uns nem outros têm valor.
Por conseguinte, se para Sócrates a virtude é ciência e o vicio é a ignorância, então pode dizer-se que ninguém peca voluntariamente, isto é, quem faz o mal fá-lo por ignorância do bem. Estas posições, que resumem o intelectualismo socrático, reduzem o bem e o mal a uma questão de conhecimento, de modo que considera impossível conhecer o bem e não praticá-lo.
Esta maneira de pensar influenciou todo o pensamento dos gregos a ponto de se tornar quase o denominador comum de todos os sistemas. Sócrates chegou a notar que o Homem, pela sua natureza, procura sempre o seu próprio bem e que, quando faz o mal, na realidade não o faz porque pretenda o mal, mas porque dai espera extrair algum bem. Dizer que o mal é involuntário significa que o Homem é vítima da «ignorância».
Sócrates tem razão quando diz que o conhecimento é condição necessária para fazer o bem, porque se não conhecemos o bem não podemos fazê-lo; mas engana-se ao considerar que, além de condição necessária é também condição suficiente. Ora, para fazer o bem é também necessário o concurso da «vontade». Este conceito, a que os filósofos gregos não deram muita consideração, só se iria tornar essencial e central na ética dos cristãos.
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